Jah Biroba finalmente estava aliviado. Sua canção havia aplacado a fúria vegetal de Pau Ladinha. Mas isso agora podia ficar de lado, pois o senhor da floresta iria ajudar o grupo de aventureiros a atravessar a floresta em direção ao barco de Mur Ronusrim e seus amigos, na esperança de alcançar Eutoku Utérror ou pelo menos encontrar vestígios de sua fuga.
E o auxílio de Jah Biroba se mostrou valioso. O ent se locomovia pelo mato com destreza espantosa. Afinal de contas, ele era o lorde daquelas terras selvagens (e saia em debandada dessa mesma forma quando fugia de Pau Ladinha). No seu trajeto, ele conversava com os animais. Trespassava riachos e lagos com vigor. Fazia malabarismos com os cipós das grandes árvores, dignos do melhor artista circense (“essa manobra eu faço sem a rede de proteção”, gabava-se).
O ritmo do ent era tão intenso que não poderia ter sido acompanhado pelos aventureiros. Mas isso não se mostrou um grande obstáculo. A equipe se amontoou dentro de Borgan III, a canoa de Sinsalabim, que foi carregada nos braços de Jah Biroba. (Diga-se de passagem que a banda de sopro e cordas não estava mais com o grupo, pois eles tomaram outro caminho). Pode-se dizer que a viagem foi radical. Até demais. A sensação de estar dentro da jangada era a mesma de se estar na mais violenta montanha-russa. Vômitos não eram raros. Súplicas pela “mamãe” também não. Jah Biroba não ajudava, pois dava umas sacudidas na jangada só para se divertir.
Mas no final das contas, o resultado se mostrou positivo. Em questão de uma manhã e uma tarde, chegaram à praia onde Mur Ronusrim havia atracado o seu barco. Todos esperavam pelo pior. Mas acabaram se surpreendendo. A embarcação de Mur, o “Ginete do Mar”, estava ainda lá, ao lado dos destroços da nau queimada de Eutoku, o “Potreiro Oceânico IX”. Utérror não havia se apossado do vaso de seu rival. Mas por quê? A resposta era mais simples do que parecia.
O “Ginete do Mar” não era um barco muito grande, mas requeria um exímio marujo para movê-lo sozinho. Eutoku Utérror era um péssimo navegador. Seus mercenários é que haviam conduzido o “Potreiro Oceânico IX” até ali. Certa vez, quando o imediato gritou “Olha a Proa!!!”, Eutoku, pensando que o sujeito era meio caipira, respondeu “Sim! De milho!!”.
---
Mas também não era nenhuma surpresa que Eutoku não sabia nada sobre os ofícios de um grumete. Sua vida sempre foi em terra firme, onde começou servindo no exército da cidade-estado de Talagassus. Sua função era a de batedor e, entre seus camaradas de trabalho, encontrava-se Mur Ronusrim.
Naquela época, Utérror se desiludiu completamente com suas funções militares. Quando se alistou, pensou que “batedor” era aquele que podia espancar os inimigos sem dó, piedade ou responsabilidade. Ficou perplexo quando vieram para cima dele com um papo de “reconhecimento”. A partir daí, sempre se mostrou indisciplinado e desgostoso com o trabalho. Mur Ronusrim era o contrário: tinha conhecimento exato do que deveria fazer e se dedicava às suas tarefas.
Tal antagonismo explodiu durante uma missão onde os dois deveriam fazer o reconhecimento das defesas do castelo de um tal Marquês Ticaipucha, que havia trocado de lado em um conflito entre cidades-estados da região. Na ocasião, os dois acabaram sendo capturados. Durante os interrogatórios, Ronusrim não contou nada, mesmo sendo ameaçado de ter seu bigode magicamente oxigenado. Utérror, por sua vez, encontrou ali uma oportunidade: mudou de lado, contou tudo e mais um pouco, e ainda conseguiu um emprego nas tropas do marquês, para assim exercer a sua visão do cargo de “batedor”. Mur Ronusrim foi jogado em um calabouço.
Algum tempo depois, com a derrota de seu lado no conflito e sendo procurado pelas autoridades de Talagassus, Eutoku Utérror se tornou um mercenário, atuando em prol das escórias endinheiradas da região. Mur, libertado com o fim das hostilidades, deixou de ser um soldado e se tornou um caçador de recompensas.
---
O grupo se despediu rapidamente de Jah Biroba. O ent estava com pressa, pois Pau Ladinha não perdoaria mais atrasos. Tão logo as despedidas terminaram, todos foram averiguar o barco: estava intacto, sem nenhum sinal de atividade, fora a catinga deixada ali por um bando de micos que aparentemente promoveram festins dentro da nau.
A conclusão natural era que Eutoku ainda devia estava na ilha. Sinsalabim tinha uma teoria de que o fugitivo devia ser um baita nadador, mas ninguém deu atenção. Mur prontamente começou a rastrear pistas que indicassem a localização do seu rival. Estava difícil. Sinsala queria ajudar, mas apenas conseguia avacalhar com os rastros encontrados pelo meio-elfo.
Finalmente, depois de percorrer um grande pedaço da praia (Sinsalabim sempre atento, temendo encontrar farofeiros), e depois de se embrenhar brevemente na floresta, o grupo seguiu os vestígios até uma caverna encravada em uma grande montanha.
Sinsalabim, Mur, Difarola Ceso, Cerel H’lepis e Bri'o'Cu invadiram a escuridão da gruta. Após algum tempo, o caminho se dividiu em três. Decidiram se separar, Sinsalabim e Cerel indo pela direita, Mur e Difarola tomando a trilha da esquerda, Bri'o'Cu embrenhando-se pelo rumo central.
---
Cerel e Sinsalaba caminhavam já há algum tempo, seu caminho sendo iluminado por uma mágica do feiticeiro halfling. De repente, chegaram ao final da trilha, e se depararam com um paredão de pedra.
- Pelo jeito o Eutóku não veio por aqui. – Falou Sinsalabim, fingindo uma cara de decepcionado, mas feliz por dentro por não ter que se envolver em uma peleia com o vilão.
- Sim, vamos voltar e... espere! – interpelou Cerel – Estou sentindo uma coisa!
- Pois é... lanchei a pouco uns risoles temperados com naquinhos de porco selvagem...
- É muito forte!
- Bem... comi uns natchos acebolados também...
- Uma presença indiscutivelmente mágica!
- O quê!? Então aquelas cebolas que o Jah Biroba me deu eram encantadas? Aquele sac... bem... é inegável que elas estavam estupendas...
- Sinsalabim... a presença mágica vem desse recinto aqui! Sem dúvida não são os seus risoles e natchos, porque quando percebi que a tua situação estava braba, usei o feitiço do climatizador aromático “odores da primavera” há poucos minutos... – Explicava Cerel, quando apontou repentinamente o dedo. – Alí! Naquele monte de pedras!
Havia uma pilha de rochas amontoada cuidadosamente no canto da gruta. Seria praticamente impossível notá-la sem a percepção arcana de Cerel H’Lepis, porque, além de o monte ter sido cuidadosamente arquitetado para chamar a menor atenção possível, o limo tomava conta das rochas, o que a camuflava ainda mais. Os dois companheiros afastaram os pedregulhos até que se depararam com um pedaço de pano. Era uma vela de navio. O objeto, tomado por lodo, mofo e sujeira, estava embrulhando duas caixas de madeira.
O halfling agarrou a que possuía formato cúbico. Lançou cuidadosamente um feitiço para abrir a trava. Dentro, encontrou mais um embrulho: era um mapa. Ele envolvia um artefato metálico em formato cilíndrico que tinha cerca de 20 centímetros de largura, ornado com complexos arabescos curvilíneos. No mapa, estava desenhada toda a costa leste do continente, com todas as ilhas cuidadosamente representadas. Um “X” estava gravado em um ponto bem no meio do oceano.
- O que você acha, Sinsalabim?
- Isso aí é de colorir? Ahn... tu pode me dar uma forcinha na minha trava aqui?
Com a ajuda de Cerel H’Lepis, Sinsalaba abriu o seu caixote, mais fino e mais largo que o outro. Dentro do recipiente, o estóico aventureiro encontrou uma capa cuidadosamente dobrada. Ela era de um azul-marinho extremamente intenso e escuro. Suas bordas apresentavam detalhes em ouro e prata. Sinsalabim, fascinado pelo achado, prontamente vestiu o item.
- Não seria melhor estudar um pouco os objetos para saber quais são seus propósitos, antes de sair usando eles sem qualquer cuidado? – perguntou H’Lepis.
- Hahaha. Você se preocupa de mais. O que poderia acontecer de errado? Só porque na última vez que usei um item mágico uma cabeça brotou da minha bunda? Está tudo dominado... curte só como fico garboso com o manto aqui!!
Os dois então começaram o caminho de volta.
---
Bri'o'Cu estava precisando suar a camisa. Seu caminho era tortuoso, difícil. A cada minuto, precisava realizar grandes feitos acrobáticos para vencer obstáculos naturais como penhascos, caminhos estreitos e paredões de pedra. E, praticamente a cada barreira vencida, apareciam monstros das profundezas querendo almoçá-lo.
Finalmente, se deparou com um precipício enorme, instransponível. Não havia mais como avançar. O rakshasa, fulo da vida, não conseguia acreditar. Tudo aquilo para nada. Mas então uma faísca de alegria tomou conta dele. Ele notou que havia escritos e desenhos primitivos nas paredes de rocha ao lado da cratera profunda. “Conhecimento ancestral, sem sombra de dúvida”, falou para si mesmo.
O idioma era extremamente antigo. Bri'o'Cu só conseguiu decifrar as palavras porque conhecia um dialeto parecido, menos obscuro e menos ancião, uma variação daquele linguajar remoto. Após longos minutos de exercício mental ele leu:
“Esse é o fim da linha. Seu imbecil. Devia ter escolhido a porta número dois ou número três. Hahahahaha”.
Além disso, havia uma série de desenhos rústicos espalhados pelo “mural” de pedra. Esses sim deviam ser valiosos para qualquer estudioso de antropologia ou de arqueologia.
Mas isso pouco importava para Bri'o'Cu, que se encontrava em um estado de raiva insana. Ele, que estava coberto com as substâncias mais asquerosas e nojentas imagináveis, oriundas das criaturas que teve de derrotar para chegar ali, utilizou tais fluidos para pichar todos os desenhos. Delineou bigodes, carrancas, mudou o sentido das cenas ali representadas... ficou uns 15 minutos nessa empreitada.
Então, começou a jornada de volta, que certamente seria tão desgastante como a vinda.
---
Na trilha da esquerda, Mur Ronusrim e Difarola Ceso estavam andando em estado de alerta, procurando serem os mais silenciosos possíveis. Porém todo o cuidado da dupla não foi o suficiente. Eutoku Utérror estava ali, e sabia que uma hora ou outra os seus inimigos iriam aparecer. Ele estava de tocaia em um canto obscuro da caverna.
Quando notou que Mur e Difarola estavam vindo, esperou o momento certo e pulou em cima deles rapidamente, feito um gato marrom com listras pretas que prefere comer ração à tarde e não ao alvorecer, dormindo assim boa parte da manhã e da noite. Conseguiu dominar Difarola e fazê-la de escudo humano, agarrando-a com o braço esquerdo e colocando uma adaga rente a seu pescoço. Mur percebeu com atraso a ação de Utérror, mas prontamente apontou sua besta para o vilão.
- Acabou, Mur. – Disse Eutoku para o meio-elfo. – Se você e seus companheiros não me deixarem ir, eu acabo com a garota aqui.
- Será que sua adaga é mais rápida que minha besta? – indagou Ronusrim.
- Você é patético. Esse teu virote vagabundo nem arranha minha armadura fodástica enfeitiçada. Bwahahahahaha!!
- Então experimenta isso! – Urrou Difarola, que com um movimento rápido com o calcanhar, acertou em cheio as castanhas de Eutoku. Mas Utérror nada sentiu.
- Hahahaha!! Sua idiota! Eu tenho uma coquilha mágica também! Vocês nada podem comigo!
- E como você pretende fugir? Você não sabe navegar sozinho! – bradou Mur.
- É só uma questão de eu encontrar aquela bandinha. Eles estão sob contrato ainda. Eles podem me ajudar. Hahahahahaha!!
Mur ficou mudo por uns intantes. Eutoku continuava rindo. Então, o meio-elfo começou a gracejar.
- Pfffhihihihihihi... – começou o meio-elfo, e logo em seguida começou a gargalhar. Em poucos segundos, tanto Mur quanto Eutoku estavam rindo desenfreadamente.
De repente, Mur mirou sua besta para cima. A arma talvez não fosse forte o suficiente para vencer a armadura mágica de Eutoku. Mas conseguia penetrar em uma estalactite. E foi exatamente isso que aconteceu. Logo em seguida, um grande pedaço cônico de concreção calcária encontrou a cabeça de Utérror, que mesmo com seu elmo (que lembrava uma cabeça de cachorro, com dois olhos cartunescos, o focinho insinuando-se para a frente e um par de orelhas caindo quase até os ombros nas laterais), não resistiu em caiu redondo no chão.
Rapidamente Eutoku foi amarrado. Mur o agarrou e, junto com Difarola, todos foram em direção à saída da caverna.
E agora o que acontecerá com o grupo, agora que Eutoku Utérror foi finalmente capturado? Que mistérios envolvem os itens mágicos encontrados por Sinsalabim e Cerel H’Lepis? Será que Penel Lop e Bri'o'Cu se encontrarão novamente?
Nenhum comentário:
Postar um comentário